Acadêmicos Gilson Soares Feitosa1,2, Luiz Antônio Rodrigues de Freitas2, Jorge Pereira Silva2, Mittermayer Reis2 (comissão de redação) e todos os membros da Academia de Medicina da Bahia*
INTRODUÇÃO
O uso de substâncias para melhorar o desempenho de atletas em competições, conhecido como “doping”, é um problema reconhecido há bastante tempo e tem sido motivo de ações por parte de comitês nacionais e internacionais de instituições esportivas para coibir o seu uso. Testes bioquímicos para a identificação do uso presente ou passado recente por atletas de alto desempenho são desenvolvidos e aperfeiçoados à medida que novas substâncias são ilicitamente introduzidas.
Na longa lista dessas substâncias estão a testosterona e seus derivados sintéticos. Esse hormônio esteroide anabolizante androgênico (EAA) foi primeiro isolado em 1935, sintetizado em 1939 e inicialmente utilizado para reposição e depois como complementação para o tratamento do “climatério” masculino a partir de 1940. Desde 1954 passou a ser utilizado por atletas de alta performance, sobretudo levantadores de peso (halterofilistas), com o intuito de melhorar o desempenho. Em 1968, nos Jogos Olímpicos de Montreal, o Comitê Olímpico Internacional decretou seu banimento e foram aplicados testes nos atletas para a detecção do uso. A WADA (World Anti-Doping Agency) inclui a proibição permanente, em todas as modalidades de competições esportivas, do uso de agentes anabolizantes.
Os EAA inicialmente tiveram seu uso restrito a atletas de elite e muitos halterofilistas amadores, mas nas últimas três décadas passou a ser utilizado de modo mais generalizado por milhões de pessoas sem o perfil de atletas de alta performance, em uso recreacional, visando aumentar a capacidade física e por fisiculturismo.
Há dados da literatura americana que estimam o uso de EAA por três a quatro milhões de americanos. Em torno de um milhão dos usuários tornam-se dependentes dessas substâncias. No Brasil há poucos estudos sobre a prevalência do uso de EAA por praticantes de atividades físicas. Um estudo no Rio Grande do Sul mostrou prevalência de uso de EAA em 11,1%; de outros hormônios, em 5,2%; e de medicações de outra natureza, em 4,2%; dentre 288 indivíduos entrevistados em 13 academias de Porto Alegre (Silva, PRP et. al., 2007). Os EAA mais usados foram decanoato de nandrolona e estanozolol. Outro estudo visando obter informações sobre a epidemiologia global do uso de EAA por meio de meta-análise e análise de metarregressão mostrou que a prevalência global do uso de EAA é de 3%, com prevalência de 6,4% entre homens, significativamente maior que entre mulheres (Sagoe, D et. al., 2014). Esse estudo assinala que a prevalência no Brasil não difere do observado em outras partes do mundo, em torno de 3%.
Há fortes indícios, a partir de publicações de casos isolados e de séries de casos que o uso prolongado de EAA tem efeitos deletérios, sobretudo no aparelho cardiovascular (Achar, S. et. al. 2010). Importante assinalar que o uso disseminado desses hormônios ocorreu a partir dos anos 1980 e que os usuários de longa duração estão agora atingindo a meia-idade, tempo em que as doenças cardiovasculares começam a se manifestar, em geral, e que isso pode coincidir com as manifestações dos efeitos adversos do uso crônico dessas substâncias.
Chama a atenção a escassez de estudos clínicos bem conduzidos e conclusivos sobre os riscos cardiovasculares do uso de EAA. Há algumas evidências desses riscos tanto a partir de estudos experimentais quanto de publicações isoladas de dados em humanos.Há relatos que associam o uso de EAA com morte súbita por problemas cardíacos, incluindo doença isquêmica e arritmias (Bowman S, 1990; Ferenchick GS et. al., 1992).
Estudos experimentais, sobretudo, sugerem que os EAA promovem hipertrofia de fibras musculares dos tipos 1 e 2, estimulam a proliferação de células satélites progenitoras de músculo estriado, aumentam a biogênese de mitocôndrias e aumentam a produção de 2-3 difosfoglicerato, facilitando a dissociação de oxigênio da hemoglobina (Gupta V et. al., 2008; Coviello AD et. al., 2008)
Uma alteração descrita em usuários crônicos de EAA é a ocorrência de dislipidemia. Gårevik N et. al. 2011, descrevem como efeitos adversos do uso de esteroides anabolizantes acne, ginecomastia, atrofia testicular e secreção de LH e FSH pela hipófise. Os efeitos cardiovasculares estão associados a distúrbios no perfil do colesterol, com aumento de LDL e diminuição de HDL, e mostram que após seis meses de suspensão das drogas há aumento dos níveis de HDL e redução dos níveis de LDL. Parece que a intensidade das alterações do perfil lipídico tem relação com o tipo e a via de administração dos EAA (Thompson PD et. al. 1989). Em revisão de dados da literatura de Achar, A et. al., 2010 mostram elevação >20% nos níveis de LDL e redução de 20% a 70% nos níveis de HDL, entre os usuários de EAA. A elevação dos níveis de LDL sérico parece relacionada com a indução da triglicerídio-lipase hepática e do catabolismo de VLDL. A triglicerídio-lipase hepática pode induzir o catabolismo do HDL e redução de seus níveis séricos. Essas alterações aumentam de 3 a 6 vezes o risco de doença arterial coronariana.
Os EAAs causam hipertrofia de cardiomiócitos ao mesmo tempo em que interferem no funcionamento arterial coronário. Tagarakis CV, et. al., 2000 mostram que ratos tratados com propionato de testosterona (PT) e submetidos a exercício físico não se beneficiam do aumento da rede capilar, redução da distância entre capilares e aumento da densidade de capilares em torno de cardiomiócitos observados nos controles submetidos a exercícios, mas sem exposição à testosterona. Por outro lado, foi observada uma discreta hipertrofia dos cardiomiócitos no grupo tratado com PT, em relação ao grupo sem tratamento. Os efeitos da PT na microvasculatura poderiam causar um desequilíbrio entre o suprimento de oxigênio e a demanda, sobretudo durante a prática de exercícios. Evidências experimentais mostram que EAA, causam redução da reserva contrátil do miocárdio à estimulação beta-adrenérgica (Norton GR, et. al. 2000). Além desses efeitos, os EEAs afetam o balanço redox celular e favorecem um estado de estresse oxidativo (Frankenfeld SP, et. al., 2014). Os EAAs induzem apoptose de cardiomiócitos in vitro, de modo dose dependente e por indução de moléculas pró-apotóticas (Zaugg M, et. al., 2001). Eles diminuem o limiar de arritmia, em função de remodelação morfológica dos ventrículos, alterando a expressão gênica relacionada com moléculas envolvidas na formação de poros das subunidades alfa que contribuem para a fase de repolarização e de excitação- -contração via modulação de Ca2++ e outras correntes de K+ (Medei E, et. al., 2010). Trabalho recente, publicado na prestigiosa revista de cardiologia de circulação internacional, Circulation, 2017, de estudo de coorte transversal (cross-sectionalcohort) envolvendo halterofilistas de academias de ginástica nos Estados Unidos da América, usuários ou não de EAA, como o objetivo de avaliar a toxicidade cardiovascular do uso ilícito de EAA, de autoria de Baggish, Al et. al., 2017, traz dados convincentes e preocupantes sobre os riscos cardiovasculares do uso ilícito de EAA. Dado seu pioneirismo e importância, esse estudo será em seguida descrito com alguns detalhes.